grayboy

15 de outubro de 2020

Cálice

Há sentimentos, sensações, emoções
Intangíveis ao nível das palavras
Seja pela ausência lexical
Seja pela limitada coragem
Fá-lo-ia senão fosse um poeta fracassado
A incerteza da recepção
Asila-me numa linguagem hermética
Subversiva aos mais audaciosos
Permuto-me na crença e descrença do Eu 
Ser-me-ia mais fácil abandonar tudo
Agarrar-me à mediocridade da vida
Mas isso me seria insuficiente
Peco e despeco no desejo de agradar 
Sei da brecha que há na autoconfiança
Contudo a impotência se faz diante dela
Decido, por fim, habitar na insensibilidade
Fazendo do outro o dispensável
Inundo o cálice do conteúdo que sou
Não ofereço a mais ninguém senão a mim
Provo e gosto, isso me é suficiente. 


- Fhelipe Viegas

10 de outubro de 2020

Bom dia, tristeza!

Às vezes ela apenas vem
Sem anunciar ou insinuar sua chegada
Ela, a tristeza, senta-se ao meu lado
Serve-me um trago de seu plasma
Procura, em meu olhar, seu reflexo
Nada diz sobre a razão de se estar
É intrusa, e peleja fazer-se minha
Às vezes, sorrir, às vezes, chora
Um choro que, às vezes, creio belo
Em horas-mortas, bebe do licor que sou
Gosto de ser sua maior obsessão
Gosto do bálsamo que diz ter
Talvez ela é apenas imaginação
Talvez ela é tão somente minha
Mas, por nada dizer, acostumo-me a tê-la
Tê-la como minha fiel amiga

- Fhelipe Viegas

11 de julho de 2020

Amor colérico

Não te surpreendas, se, por acaso, eu vier a matar-te,
Não te precipites a pensar que de amor não padeci,
Pois deste-me um amor ardente em cólera
Mesmo sendo tu o prana do meu amor em frenesi.

Viveste na boêmia dos bares da Aurora,
Procuraste luxúria até onde pudeste resistir,
Testando o quão magnânimo é o meu amor,
Disseram-me, até, que outro te puseste a sentir.

Tencionando atenuar a acidez do nosso estupor,
Quais outras desculpas, a mim, hão de vir?
Para encobertar, outra vez, teu nada intrépido amor,
Quais mentiras, engenhosamente, te porás a urdir?
Quais?


- Fhelipe Viegas

1 de julho de 2020

Um amor em quarentena


A Medina acorda com primeiro chamado
Ao longe, meus oníricos olhos a veem brilhar
Curvam-se, em todo o globo, à grande pedra
Até a grama escala o deserto para ouvi-la cantar

Unem-se as aves num canto uníssono e vibrante

A libélula dos montes respira o ar do novo dia
Não lhe foge a pasmaceira do etílico homem errante
Nem mesmo os silfos escapam da beleza que irradia

A vida nasce outra vez com o dormir da noite

A luz solar tateia o que, por hora, não posso
Todo esse meu amor que eu o também amoite
Todo esse meu estupor que eu tire do que é nosso

Cresce, lá fora, a vida esperando que eu esteja pronto

Ingênua, a pensar que disso não sobrará sequela
Só o prana não se encerra com o fim de um ponto
Pois tudo isso contarei que, triste, vi de uma janela.

O nosso amor, há muito, em quarentena. 


- Fhelipe Viegas


22 de abril de 2020

O destino da estrela

As infindáveis estrelas que hoje brilham
Podem, há muito, ter morrido
Morrido de amor ou de uma súbita catarse
A de reconhecer seu frívolo destino
Seu brilho, as tuas mensagens,
Ainda se fazem presentes
Na retina cuja cisma
anseia o viço da matéria emitente

Eu ainda estou presente em ti?
No teu céu, quando vês a lua;
Nas tuas lembranças, quando pensas em mim;
Nos teus textos, quando escreves;
Na tua cama, com Napoleão;
Na Lana, quando a escutas;
Eu ainda estou presente em ti?

- Fhelipe Viegas

26 de março de 2020

Amor juvenil

Abri os olhos arenosos na profusão do sono
Repelindo a languidez da última modorra 
Estavas tu a olhar-me diante da porta
Redigindo com os lábios nossa masmorra 

Quiseste ver-me sobre o leito que me suporta
Tecendo um lamento outrora sutil
Disseste que, no peito, amor tu portas
Mesmo que este me parece hoje senil  

Juraste dar-me o amor que o tempo corta
Banhá-lo em puro formal e em pó anil
E o nosso amor durar como o de Inês morta
Todavia, ao final, o passei por um funil

Disto me veio a verdade do teu amor
Da ínfima e irresoluta substância juvenil
Cujo fetiche resume-se em forte dissabor
Pois felicidade não se busca quem nunca amor sentiu 

- Fhelipe Viegas

6 de janeiro de 2020

Exumação

Miasmou-me teu cheiro
Putrefato, fétido e nocivo
De ti, sobrou apenas o cabelo
Que outrora me era lascivo

Como pensar em rica rima
Diante deste saco, um ossário
Como assimilar este cálcio
Sendo tão teu animal gregário

Como ignorar o sorriso perpétuo
Que tiveram cetinosos lábios
Como olvidar a jura de amor eterno
Antes dita inabalável pelos sábios

A voragem de tua morte me é inverno
Sugou-me o verão e primavera
Dou-lhe agora meu beijo consterno
Pois tua exumação me exuma
Também nosso amor "eterno".


-Fhelipe Viegas